Projeto de legislação de seguros representa retrocesso sem precedentes

O tema de uma nova legislação de seguros voltou a estar em evidência com o desarquivamento do Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 29/2017, que dispõe sobre normas de seguros privados e revoga dispositivos do Código Civil.

O PLC consiste em 129 artigos, divididos em seis títulos: 1) Disposições Gerais (artigos 1 a 92); 2) Seguros de Danos (artigos 93 a 109); 3) Seguros sobre a Vida e a Integridade Física (artigos 110 a 122); 4) Seguros Obrigatórios (artigo 123); 5) Prescrição (artigo 124 a 125); e 6) Disposições Finais e Transitórias (artigos 126 a 129).

Uma simples leitura da divisão sistemática proposta já revela uma falha técnica, pois, nas disposições gerais são cerca de 90 artigos, que englobam temas como cosseguro, seguro em favor de terceiro e resseguro, que, nem de longe, se referem a aspectos gerais aplicáveis a toda e qualquer relação securitária. Aliás, o resseguro sequer deveria estar presente no texto, dada a sua especificidade e o fato de que não deve jamais ser confundido com o seguro.

Não se faz necessária uma nova legislação securitária em diploma separado, tal como proposto no PLC, tendo em vista que a publicação do Código Civil é recente e o Capítulo XV, que trata do seguro contém dispositivos que mereceriam ser aproveitados. Idealmente, uma nova lei de seguros deveria manter os bons dispositivos já existentes no Código Civil, em vez de revogá-los ou transformá-los por completo.

Não é isso que se vê no PLC. Ao contrário, observamos uma série de falhas no texto proposto. Por exemplo, os artigos 102 a 106, que tratam do Seguro de Responsabilidade Civil, em muitas passagens, além de não se coadunarem com a melhor prática que permeia essa espécie securitária, contrariam a própria natureza desse seguro e alteram a legislação processual vigente.

O artigo 102 [1]caput, consagra o entendimento de que o seguro de responsabilidade civil protege o patrimônio do segurado, na primeira parte. Todavia, peca, na segunda parte, ao se referir ao interesse dos terceiros prejudicados à indenização, o que poderá trazer consequências. Ora, o seguro de responsabilidade civil protege o patrimônio do segurado, e não o de terceiro, mesmo porque o limite máximo garantido pode ser exaurido com a reclamação de um único terceiro prejudicado pelo segurado ou alguns poucos terceiros.

O artigo 103, caput [2], consagra a Súmula 529 [3] do STJ, mas de uma forma mais rígida, ao criar uma dispensa de litisconsórcio em seu §1º [4]. O §2º [5] afirma o que já vem ocorrendo na prática com relação à cobertura para custos de defesa, muito embora, consigne, de forma expressa, que a fixação do valor para tal cobertura específica é diversa daquela destinada à indenização dos prejudicados, o que poderia levar a conclusão de que a sua utilização não abrange os valores das demais coberturas, desrespeitando a sistemática de previsão no tocante ao limite máximo de garantia previsto na apólice.

O §3º [6] trata do dever de colaboração e das consequências da falta desse dever por parte do segurado e do “responsável garantido pelo seguro”, expressão que deixa dúvida. Se vigente a disposição pretendida no PLC, o segurado simplesmente pode ficar motivado a não comunicar à seguradora, acerca da ocorrência de fato que pode vir a gerar a sua responsabilidade, pois a consequência, não mais será a perda do direito ao recebimento da indenização securitária, mas a responsabilidade por perdas e danos. Em outras palavras, caberá à seguradora demonstrar que a conduta do segurado foi ilícita e lhe ocasionou danos indenizáveis, inviabilizando os aspectos econômicos que permeiam o seguro, já que, em paralelo, caberá à seguradora regular o sinistro.

Aliás, o PLC, em diversos momentos, trata de consequências relacionadas à culpa ou ao dolo do segurado, em substituição ao mero descumprimento contratual como sendo suficiente para gerar consequências no âmbito de uma apólice, desconsiderando a dificuldade de comprovação de situações de fraude e dolo, em negativas administrativas, inclusive.

Para que o segurado transacione com o terceiro não será mais necessária a anuência da seguradora [7], na medida em que o PLC é silente quanto à vedação da celebração de acordo entre o segurado e o terceiro prejudicado, sem a anuência da seguradora.

A regra imposta pelo §6º [8] é, igualmente, desafiadora porque supõe o entendimento de que a seguradora somente ficará liberada com a prestação da totalidade das indenizações a todos os prejudicados, salvo se ignorar a existência dos demais. Todavia, não é essa a sistemática do seguro de responsabilidade civil. O seguro tem foco no patrimônio do segurado e não no de terceiro. Além disso, irá indenizar até o limite máximo garantido da apólice, e esse limite, muitas vezes, é insuficiente para indenizar todos os terceiros envolvidos. Ainda, causa perplexidade a previsão contida no §7º [9], no sentido de que o segurado deverá empreender todos os esforços para informar os terceiros prejudicados sobre a existência e o conteúdo do seguro contratado.

O artigo 106, parágrafo único, por sua vez, confunde os institutos de direito processual civil de chamamento ao processo e de denunciação da lide, ao prever que o segurado poderá chamar a seguradora a integrar o processo, na condição de litisconsorte, sem responsabilidade solidária. A legislação processual civil estabelece que, no chamamento ao processo, há existência de solidariedade entre os “chamados”, razão pela qual se verifica uma impropriedade técnica ao mencionar o chamamento sem responsabilidade solidária. Aliás, o Código de Processo Civil atual prevê que, na denunciação da lide, procedente o pedido da lide primária, pode o autor, se for o caso, requerer o cumprimento da sentença também contra o denunciado, nos limites da sua condenação na ação regressiva.

Quanto à prescrição [10] em seguros de responsabilidade civil, ficaria mantida a sistemática atualmente vigente, na medida em que continuaria a existir, para o segurado, o prazo prescricional ânuo contado a partir da sua citação na demanda proposta pelo terceiro. Haveria modificação no que toca à possibilidade do referido prazo ser contado a partir da data em que o segurado indeniza o terceiro, com a anuência da seguradora (já que não haveria mais a regra da necessidade de anuência da seguradora). No entanto, o PLC prevê o prazo de três anos para que o prejudicado exija a indenização securitária da seguradora, tendo início o referido prazo a partir da ciência do fato gerador.

Nesse tocante, há o surgimento de diversas questões, que necessitarão de exercício hermenêutico para sua solução. Fica consagrada a possibilidade do surgimento de relação entre o terceiro prejudicado e a seguradora e surge para o terceiro um prazo de três anos contra a seguradora, prazo esse maior do que aquele previsto para o próprio segurado, que é de um ano. Para além disso, haverá discussão quanto ao conceito de fato gerador apto a ensejar a abertura do prazo prescricional do terceiro em face da seguradora.

Também merece destaque a previsão [11] de prorrogação do seguro destinado a garantir interesses que recaírem sobre empreendimentos, já que os seguros de responsabilidade civil geral são comumente contratados em grandes obras. O PLC exemplifica tratando da prorrogação dos seguros de engenharia (que se diga de passagem, muitas vezes têm coberturas conjugadas com ramos de responsabilidade civil). Estabelece o dispositivo que a garantia não pode ser interrompida, devendo o seguro ser prorrogado até sua conclusão, ressalvado o direito da seguradora à diferença de prêmio relativo ao aumento do tempo do contrato, o que terá um impacto na precificação do seguro e viola a liberdade contratual. Não deveria uma lei obrigar uma parte a manter um seguro dessa forma.

Igualmente é digno de nota a forte interferência do PLC na legislação de arbitragem e em dispositivos de cunho processual, conforme se depreende da simples leitura dos artigos 63 [12], 126 [13] e 127 [14], ponto esse também que merece ser revisto pelo Senado Federal.

É inegável que as normas regulatórias editadas pela Susep e CNSP, muitas vezes, acabam suprimindo a ausência de legislação específica federal em determinados assuntos, o que poderia ser, de certo modo, evitado se existisse uma lei de seguros. Porém, considerando os diversos tipos de seguro, dos mais comuns aos massificados e grandes riscos, não é possível que um único texto legal seja aplicado, indistintamente, às mais variadas espécies e situações concretas que existem no mercado, sob pena de causar uma distorção que, hoje, não existe.

E, mais, sob pena de prejudicar o próprio segurado, pois, se as seguradoras tiverem que adaptar suas rotinas e operações para uma forma única legislativa aplicável a todo e qualquer seguro, o custo, muito provavelmente, será repassado na precificação dos seguros.

O PLC, além de elevar o segurado a uma categoria a qual é dada maior proteção daquela atribuída ao próprio consumidor, na legislação pertinente, desconsidera, por completo, qualquer análise de impacto regulatório que terá a necessidade de alteração de inúmeras regras, atualmente, consagradas, bem como o custo e o tempo que demandará seja do regulador, seja das seguradoras, dos resseguradores, dos prestadores, e de todos aqueles que, de algum modo, se relacionam com a atividade securitária. Isso sem esquecer do grande segurado, obviamente, que celebrou e, muito, a liberdade concedida pelo regulador nos últimos três anos, que acabaria suprimida com a nova lei.

Não se nega que o PLC tenha tramitado da Câmara para o Senado, com a realização de audiências públicas e a participação de players importantes. Porém, merece reflexão se esse mesmo texto, aprovado em uma das Casas no passado, é compatível com a nova realidade imposta em um mundo pós-pandemia e com o desenvolvimento almejado em seguros e resseguros.

A resposta, com o devido respeito às opiniões divergentes, é apenas uma: o PLC, que já nasceu com sérios problemas quando chegou ao Senado, agora, no cenário atual, representaria um retrocesso sem precedentes, merecendo a oportuna reflexão e a mobilização urgente para o seu necessário aperfeiçoamento ou o seu completo esquecimento.


[1] CAPÍTULO II – DO SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL. Artigo 102. O seguro de responsabilidade civil garante o interesse do segurado contra os efeitos da imputação de responsabilidade e do seu reconhecimento e o dos terceiros prejudicados à indenização. Parágrafo único. Conforme o tipo de seguro contratado, o risco pode caracterizar-se pela ocorrência do fato gerador, da manifestação danosa ou da imputação de responsabilidade.

[2] Artigo 103. Os prejudicados poderão exercer seu direito de ação contra a seguradora, desde que em litisconsórcio passivo com o segurado.

[3] No seguro de responsabilidade civil facultativo, não cabe o ajuizamento de ação pelo terceiro prejudicado direta e exclusivamente em face da seguradora do apontado causador do dano.

[4] §1º O litisconsórcio será dispensado quando o segurado não tiver domicílio no Brasil.

[5] §2º Serão garantidos os gastos com a defesa do segurado contra a imputação de responsabilidade, mediante a fixação de valor específico e diverso daquele destinado à indenização dos prejudicados.

[6] §3º O responsável garantido pelo seguro que não colaborar com a seguradora ou praticar atos em detrimento dela responderá pelos prejuízos a que der causa, cabendo-lhe: I – informar prontamente a seguradora das comunicações recebidas que possam gerar uma reclamação futura; II – fornecer os documentos e outros elementos a que tiver acesso e que lhe forem solicitados pela seguradora; III – comparecer aos atos processuais para os quais for intimado; e IV – abster-se de agir em detrimento dos direitos e pretensões da seguradora.

[7] §4º Salvo disposição em contrário, a seguradora poderá celebrar transação com os prejudicados, o que não implicará o reconhecimento de responsabilidade do segurado, nem prejudicará aqueles a quem é imputada a responsabilidade.

[8] §6º Se houver pluralidade de prejudicados em um mesmo evento, a seguradora ficará liberada com a prestação da totalidade das indenizações decorrentes da garantia do seguro a um ou mais prejudicados, sempre que ignorar a existência dos demais.

[9] §7º O segurado deve empreender todos os esforços para informar os terceiros prejudicados sobre a existência e o conteúdo do seguro contratado.

[10] Artigo 124. Prescrevem: I – em um ano, contado o prazo da ciência do respectivo fato gerador: (…) e) a pretensão do segurado para exigir indenização, capital, reserva matemática, prestações vencidas de rendas temporárias ou vitalícias e restituição de prêmio em seu favor, após a recepção da recusa expressa e motivada da seguradora; II – em três anos a pretensão dos beneficiários ou terceiros prejudicados para exigir da seguradora indenização, capital, reserva matemática, prestações vencidas de rendas temporárias ou vitalícias, a contar da ciência do fato gerador da pretensão. Parágrafo único. No seguro de responsabilidade civil, o prazo terá início quando o segurado for citado ou notificado isoladamente para responder ao pedido condenatório formulado pelo terceiro prejudicado.

[11] Artigo 54. (…) §3º O seguro destinado a garantir interesses que recaírem sobre empreendimentos, como os de engenharia, cuja garantia não possa ser interrompida, será prorrogado até sua conclusão, ressalvado o direito da seguradora à diferença de prêmio relativo ao aumento do tempo do contrato.

[12] Artigo 63. A resolução de litígios por meios alternativos não será pactuada por adesão a cláusulas e condições predispostas, exigindo instrumento assinado pelas partes, e será feita no Brasil, submetida ao procedimento e às regras do direito brasileiro. Parágrafo único. O responsável pela resolução de litígios é obrigado a divulgar, em repositório de fácil acesso a qualquer interessado, os resumos dos conflitos e das decisões respectivas, sem identificações particulares.

[13] Artigo 126. É absoluta a competência da justiça brasileira para a composição de litígios relativos aos contratos de seguro celebrados no País.

[14] Artigo 127. O foro competente para as ações de seguro é o do domicílio do segurado ou do beneficiário, salvo se eles ajuizarem a ação optando por qualquer domicílio da seguradora ou de agente dela. Parágrafo único. A seguradora, a resseguradora e a retrocessionária, para as ações e arbitragens promovidas entre essas, em que sejam discutidos negócios sujeitos a esta Lei, respondem no foro de seu domicílio no Brasil.

Por Bárbara Bassani

Via Conjur

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